terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

começo


quis Deus, a memória, ou o acaso
que voltasse a encontrar a direcção da palavra.


hoje trago em mim a chuva miudinha que baptiza este começo.


acordei com a sensação de que a minha linha de criação não era mais do que a "lei dos pratos". e é engraçado como se cria a partir do deixar cair e partir os pratos. as pessoas acham no entanto que eu anseio que eles caiam e se despedacem sob mil formas diferentes, que me inspirem e me mostrem o caminho.

rio-me. não sabem.
não sabem que não desejarei mais do que se desfaçam sempre em pó.

circunstância


hoje li que arquitectura também é isso das guardas de ferro enferrujado e dos rebocos desfeitos que revelam o tijolo; das ruas desertas e dos taxistas que dormitam; dos pobres poetas e dos poetas pobres.
e se algures
somos habitantes da solidão,
então não quero ser habitante, mas vagabundo
- porque nómada entregue ao começo desta viagem que é o
pensamento.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Uma varanda, sobre'tudo.

Aquela noite mudou muito.

Fino, ovo estrelado afundado no prato e palavrões em castelhano contra a sistemática mentira do futebol. O regresso foi muito mais do que todos os pontapés às pedras do caminho. Eu era fúria; tu, não percebi se eras tampouco. O ano tinha sido uma guerra, tu sabe-lo bem: andamos a saltar de trincheira em trincheira à espera do primeiro tiro. Fomos carne para canhão, ambos fractura exposta à mercê deste micróbio todo. Acabamos por aprender a bater pernas neste sargaço, já que recusáramos aprender a nadar nele. E foste fiel até ao fim - o teu canto sempre atento ao zum-zum matinal, a observar, a absorver tudo sempre com sentido de tacto e "força de boa vontade".
Aquela noite mudou muito, tu sabes que mudou. Veio o estardalhaço, o cenário, a revolta e a consciência de que era preciso jogar, era preciso agarrar o leme e fazer acontecer. Não houve qualquer lágrima. No entanto, tu sabes que no fundo eu chorava pra caramba! Quem gosta gosta, nada a dizer. Tinham-me sacado o tapete de debaixo dos pés. Sentia-me um paralítico em pleno moche, atropelado de dois em dois segundos por um desconhecido diferente. E arrisquei! Dois berros, chapada na tromba do sonhador que nunca conseguiu mais do que poesia barata, all in naquela noite que trouxe muito mais do que relento gelado. Hoje não mudava uma vírgula da estória. Por muito imperfeita que seja, é a minha. Sei que aos poucos vou aprendendo a conviver com o diabo que vai zumbindo do lado do ouvido esquerdo daquela cabeça. Mas acredito. E acredito que tu serás bem mais, se acreditares mais também.


Porque aquela noite mudou muito,
mas não mudou tudo.



(de Fê-Fê, para Fê-Fê.)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Instante

Monsaraz

Juntei a paralisia da dor
À verdade do chão,
Confrontei o norte da certeza
Com a exactidão da dúvida,
Vi o reflexo gélido das minhas mãos
Esbater o brilho que condensou os dias.

E aí sim,

Quando já nada esperei do vazio
O instante contou-me
Que nada mais esperou de mim
Senão eu.


r.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

perde-se a razão


perde-se a razão capaz
de soletrar a ideia.
cospe-se a dor de não ver,
de não ser
o bolso roto no qual se perdeu,
sedenta,
a razão.



(na Andaluzia, '11)

terça-feira, 8 de março de 2011

há duas luzes, ali, junto do rio.


há duas luzes, ali, junto do rio.

o leito transborda para a foz,

derrama dogmas e palavras

e traz na memória curta dos peixes cinzentos

a possibilidade de correr rua acima,

ou esperar que o vento traga a hora do apagar das duas luzes,

ali,

junto do rio.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

a rua estreita


(Roma, '10)

a rua estreita: os pontos fogem
e lutam e caem como moscas
na teia babosa do espaço.

logo desesperam, protestam, gemem
na agonia da clausura.
e assim aguardam a pega serena da morte
afundados no véu da demência,
submersos na transparência dos compassos.

a rua estreita e tudo volta,
tudo chega.


r.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

somos iguais ao pranto


somos iguais ao pranto:
funesto na dor e presente no desgosto.

somos ferida, pele, nódoa e carne,
pêndulo sonâmbulo da história
vaga corrente salgada que arrasta a verdade
irónica mas sensata.

e fingimos que os dias são amenos,
porque nossos,
já que destroços de mentira.


r.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

quebram as dobras do tempo


quebram as dobras do tempo
soam entranhas desmedidas,
balançam penedos dormentes
o vento traz memórias esquecidas.

chega um murmúrio de terras
volta um sussurro de mar
e ecoa por vales, por serras
a história do anel de Saturno
o conto do sistema solar.

r.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

desenhar luz

Projectar é como aprender a plantar lírios brancos que não murcharão.

r.

fantasmas


antes ser nocturna memória desfocada,
sentir da mesma luz o que não foi
do que partir, chegar a nova encruzilhada
cegar, viver a dor que já não dói.




(dia mau, às 23h27, ao som daquele nocturno em mi menor)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O silêncio dos fracos


(Florença, '10)

hoje quero deixar
de servir e querer
mostrar o que foi.
hoje quero perder
e deixar de sentir o vento que dói.

o silêncio.

hoje vagueio a direito
e escondo e chamo
repenso o preceito,
ninguém me responde.
mas sei,
que tudo o que dei
marcará, será lei
gritará o meu nome.

o silêncio.

r.

domingo, 1 de agosto de 2010

rumo à velha Europa

Leça, '09


Estou de partida:
-não sei para onde, por quanto tempo, em que circunstâncias.

Acredito piamente que há um caminho a percorrer e um sem número de encruzilhadas que pretendo tatuar no que sou. Preciso de um tempo para repensar. Sinto que o mundo já esteve mais longe do precipício e que continua com as mãos nos bolsos, a assobiar e a caminhar a passo de caracol. Eu não quero fugir do abismo - apenas quero garantir que a minha alma não cai com o meu corpo. Para trás deixo muito.


(...) Continuo a acreditar na Humanidade.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Outro dia sem nome

Persegue-nos o tempo,
gritam os séculos.
Há vozes no fundo sombrio das fontes,
ouvem-se ecos de mil segredos.
Sentem-se beijos
perdidos em clausura,
suspiros cravados no ventre de botões de rosa.
Jazem preces nas pedras gélidas
erguidas em ascese,
imunes à podridão dos dias,
imunes à paixão intacta de Pedro e Inês.

A aurora desponta:
o silêncio da noite é abraçado
pelo sol de um outro dia sem nome.


(dedicado ao Mestre Arq. Manuel Botelho,
que me suportou um ano de utopias. )

Ricardo Leitão

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Cheira intensamente a solidão


O relógio marca catorze e quarenta e dois. O sol torra a mioleira numa qualquer viela sem nome, nos confins de Tomar. Ao fundo, um tal de "Calça Perra" figura como restaurante onde as noites de fado custam "22 guitarradas". Por aqui há dois tipos de pessoas: os que petiscam em refinadas esplanadas e desembolsam uma dúzia de guitarradas e nós. Muito mais alternativo alapar a seira na calçada portuguesa, encostar num muro 'random' e dividir a refeição feliz comprada no supermercado por meia dúzia de coroas com o gato de bigodes curiosos.

O sol rasga a rua e redesenha sombras esguias nas paredes caiadas de branco. Lá ao fundo, um qualquer velho do restelo, alheio ao mundo e aos trinta e poucos graus, à espera do que não volta. Cheira intensamente a solidão.

(ali sentado em Tomar, ao som de Joy Division)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Unha e carne

Consigo ainda ver-me contigo, naquele preto e branco da mente.

Consigo fechar os olhos e ver-nos mutilar ervas daninhas no quinteiro. Consigo soletrar-nos a brincar com gatos recém-nascidos, a tomar banho em tanques de água gelada e a assaltar o frigorífico e beber leite do pacote, a meio da noite. Consigo cheirar o teu cabelo, que todas as noites fazia questão de sentir na palma das mãos e por vezes até atei aos meus dedos, para ter a certeza que não dormia sozinho. Consigo ver-te abraçar o coelho que eu era, num qualquer Carnaval em que tu eras uma Pocahontas com duas penas de galinha presas à cabeça com um elástico. Consigo distinguir claramente o azul pálido da BMW putrefacta na qual me ensinaste a cavalgar, e ainda mais nítidas estão as esfoladelas nos joelhos que tão ternamente desinfectaste e agora são cicatrizes orgulhosas. Consigo ouvir o som das montanhas russas e do 'tararara-pum!' que o avô dançou em Paris, antes de lançar grande tira de presunto à cabeça de um avec. Consigo sentir a chuva que nos fustigou a pele tostada por mil verões e nos pôs de cama, lado a lado a receber tratamento de reis e leite quente com mel (lembras-te que odiava as natas que boiavam à superfície?)
Consigo desenhar perfeitamente as linhas do piano que tiveste naquele Natal e as sombras da minha cara de enfado ao ver aquele mota de brincar que nem trazia pilhas! Consigo contar pelos dedos (das mãos e dos pés) todas as viagens de família em que levava um penico azul bebé na mala do carro e em que íamos o caminho todo a cantar a mesma música, que o pai rebobinava pacientemente até chegar a plaquinha branca e as letras pretas que nos soavam ainda a desenhos esquisitos, anunciando uma resma de curvas e contra-curvas. Lembras-te do jogo que fazíamos, que metia contar burros e rir às gargalhadas da epidemia a terra quente e a rural? Vejo-nos numa tarde de rio, a fazer de conta que nadavamos de braços bem assentes na areia, e a voltarmos para casa, o tio a resmungar trinta palavrões com sotaque, por não ter pescado nada. Ao jantar a mesma massa mergulhada em manteiga e noites de arraial foleiro e farra, quando só se aproveitava os milhares investidos em fogo, que estourava e fazia tremer as pernas.
Sei que sabes do que falo, quando ouso recordar paixonetas de liceu e CD's dos The Doors a tocar dias a fio, ao som de conversas que ou acabavam com baba e ranho, ou com risota e poucas horas de sono.

Podia desenhar-te mil cenários caricatos, agora atulhados de pontos de fuga e perspectivas bem construídas, mas há coisas que fazem mais sentido nunca serem escritas.

Agora estou aqui, passivo ao que somos.
Tenho uma casa. Tenho a prateleira de sempre, atulhada de livros e revistas de arquitectura. Tenho a varanda com vista para o rio e o "quarto-cubículo" que suporta todas as minhas neuras. Tenho cadernos de esquissos, cadernos de esboços, cadernos de contornos e de aguadas que desconheces. Tenho os planos de viagem traçados a pilot numa folha de processo. Tenho a lista dos países de interrail e panfletos de tendas, panfletos de mochilas, panfletos de tudo e de nada. Tenho o mundo no qual mergulhei, e que estava ali, ao virar da esquina e de braços abertos. Tenho aquela vida sobre a qual falamos numa noite qualquer, em que havia aquela treta da liberdade e de não ter que ir para a cama rezingão só porque o relógio já passava da meia-noite e toda a gente insistia na piada seca do carro virar abóbora. É irónico. Tenho quase tudo o que sempre quis.


Hoje faltas-me tu.
Tu e o teu abraço de irmã mais velha.




Para a minha irmã,

Ricardo

terça-feira, 25 de maio de 2010

rugidos & melodias

agora também vou mandando bacoradas em:

domingo, 18 de abril de 2010

A noite em que partiste

A noite em que partiste caiu estilhaçada de encontro a um qualquer muro de lamentações. Senti-te fugir, qual papagaio de papel pleno de sentidos, emotivo ao sabor do vento. Não proferiste uma única palavra. Olhaste-me nos olhos, sufocaste-me num abraço e bateste com a porta, rumo à certeza do incerto.

(Ricardo Leitão)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O que outrora sonhei, verdade só porque era mentira.


Dói não saber escrever o ontem como fragmento de passado.
Dói como rasgar com lâminas o que supunha cicatrizado.

quarta-feira, 17 de março de 2010

The match can resume.


"A noite caía e ele vagueava pelo álcool, pelos corpos trémulos e pelos dados de um passado presente."

(Ricardo Leitão)

domingo, 14 de março de 2010

Big Jumps



Tempo de tomar decisões e de dar grandes saltos.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O tempo corta, como lâminas.


A noite cai, parcimoniosamente
Suspensa, sombria, severa.

O pecado crepitante no vazio
Petrifica o mármore austero
Devasta a raiz da idade
Como rio de sangue envenenado
Pela sombra.

E é de ouro
O silêncio côncavo que me inunda.
(Ricardo Leitão)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Vamos encarar a verdade.



- Vamos encarar a verdade?
- Vamos.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010


A fé é como uma pedra angular - subsiste na ruína.

(Ricardo Leitão)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Peso


Deixai-me errar e ver e sentir

O deserto defronte.
Porquanto a redenção transborda nua

Em vagas suspensas, tombada e crua

E eu aqui, alheio e vago

Bebendo de um trago

Da insanidade do destino.



(Ricardo Leitão)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O som


O som corta e dói.
O som acolhe e embala.
O som lamenta e anseia.
O som brilha e transfigura.


Há som. Há som por toda a parte!


(Ricardo Leitão)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Hoje escrevo para ti.



Hoje escrevo para ti, que me pões a alma em alvoroço e me prendes ao papel e à vicissitude dos dias.

Sede de ver o intocável
Debruçado na calmia do abismo fortuito
E sombrio na clarividência do pensar.

Eu acredito, e um dia mostro-te o porquê de ser verdade.
Até lá, não hesites - FÁ-LO.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Escuro e luar.

[FAUP, à noite]

A ponte da Arrábida ri-se de mim.
Sou eu e ela, abraçados, de olhos vendados, doentios na fuga ao bréu dos candelabros.

(...)

Há café e solidão, um piso abaixo.

(Ricardo Leitão)

domingo, 18 de outubro de 2009

Cai cristal, desamparado.

[Maria João Moura, Out2009]

Não há estrelas apagadas, não há céus esquecidos.
Não há ciprestes derrubados, nem temores vencidos.


E subsiste o desencanto ensanguentado da névoa imensa e triste e vendada e sedenta
que paira sobre a maré vaza do acaso, que paira sobre a sentença inútil do destino.

Só há vagas certezas do incerto, murmuradas ali ao fundo.

(Ricardo Leitão)