quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Fados Rasgados

"Era tempo. Era tempo de trancar a porta, apagar a luz, sentar-se na cadeira, levar as mãos ao rosto, e afogar todas as lembranças num suspiro.

A morte nunca seria o fim. E cada uma das recordações estava guardada no regaço impune da saudade. Era tempo de acentuar as palavras e aprender a pronunciar cada uma das sílabas com verdadeiro orgulho.
Estava um calor abafado no quarto. Lá fora, as nuvens carregadas de electricidade anunciavam uma daquelas tempestades de Verão de que ele tanto gostava.

O tempo passava e a luz continuava apagada. O tempo passava e a porta não se abria. O tempo passava e cada uma das recordações afogadas naquele suspiro imergia como peixes metamorfoseados na derrota.

Só as mãos, só as incoadunáveis mãos se prostravam agora para os céus em ascese. Não era arrependimento, nem tão pouco a culpa de não sentir. O rapaz decidira acender um pau de incenso e uma vela, e naquele mesmo instante, a tempestade rebentou.

Oscilavam sentimentos, desabaram corpo e alma. As lágrimas caiam-lhe agora pelo rosto ao ritmo da chuva que morria de encontro à calçada, enquanto imagens simples e recordações lhe enchiam a cabeça de pensamentos. Só conseguia lembrar-se do bailado das noites de Verão, das gotas de suor que a pele ia libertando enquanto o corpo deslizava ao som da música suave e o vestido negro balouçava e lhe redesenhava a silhueta. A arte fazia-se aos seus olhos e ficava ali guardada na intemporalidade das recordações que hoje o assaltavam.

A tempestade, o temor do som dos trovões, as luzes intermitentes. Tudo lhe irradiava a alma e lhe oferecia o passado como passaporte para o futuro. Não sabia quem era.

Segurava agora o pau de incenso e a vela, e chorava como uma criança a quem retiraram um brinquedo. A roupa, suja pela lama e molhada pela chuva, tornava aquela figura uma sombra perdida no meio das nuvens.

O ponteiro dos segundos girava freneticamente, e a cada movimento o rapaz ia perdendo a força de viver. Largou tudo. Mergulhou num mundo sem regresso. A sua silhueta disforme ia-se afastando num passo decidido ao longo da rua, e quebrava lentamente ao som das últimas gotas de chuva que ainda se faziam ouvir.



Atravessara dois quarteirões. Corria desvairadamente, sem norte, sem destino, sem nada. Com a roupa de gala a colar ao corpo molhado, estacou na praça principal, àquela hora deserta e ainda a recompor-se do dilúvio. Arrancou o que restava da gravata e atirou o tecido morto de encontro ao poste de electricidade mais próximo que lhe devolveu uma luz ténue e mortiça. Olhou em todas as direcções com o pânico espelhado no olhar vago e mutilado, e sentiu-se estranhamente observado pela estatuária que ornamentava os palacetes da avenida. Só agora se apercebia do longo caminho que percorrera até ali. Só agora passavam na sua cabeça todos os acontecimentos das últimas horas, como sketches inoportunos que rodavam em turbilhão na sua mente e sucumbiam as entranhas do seu abalado espírito. Lá em cima, junto ao edifício principal, um painel publicitário anunciava em letras gordas e intermitentes uma nova marca de lenços de papel e o respectivo brinde que consistia numa toalha de praia.
- Raio de sorte!
O rapaz dirigiu-se à paragem mais próxima, a pensar no autocarro que provavelmente nunca passaria, e ironia do destino, ou talvez não, o mesmo conjunto de lenços de papel piscou uma vez mais nos suportes da paragem, o que o irritou e fez pontapear uma lata para o meio da rua. Aquele barulho a qualquer hora do dia teria sido a coisa mais banal à face da terra, no entanto àquelas horas da madrugada, surtira nele um efeito de choque.

(...) "
Ricardo & Rita, Junho de 2008

domingo, 12 de outubro de 2008

Ausência

O ocaso resplandece.

Esqueçam tudo o que escrevi outrora.
Não sou mais esse que vos inspirou as veias, não mais serei um pião de madeira na palma das vossas mãos. Porque fados não são escritos nem descritos - são sentidos.