Natal.
Passaram mil e oitenta e sete dias, dez horas, sete minutos e meia-dúzia de segundos - tenho-os contado. O ciclo vicioso estende-se e eu continuo sem apreender o real sentido das coisas. Nunca cheguei a perceber o porquê de termos sido os escolhidos para revelares toda a tua fúria para com a Humanidade. Conseguiste estragar tudo e transformar a festinha das luzes no poço mais sombrio e profundo. No entanto, eu perdoo-te porque me deste a capacidade de metamorfosear a minha envolvente e de conseguir encontrar bonança, tempestade após tempestade. A verdade é que consegues tornar-me útil aos outros e fazer com que eu seja capaz de sentir que continua a haver Natal para toda esta gente. É suficiente. Isso basta para que eu alimente cada um dos meus sonhos com as recordações das quais tu fazes parte. Consigo ver-te na primeira fila, ouvindo-me cantar o fado de olhos bem fechados. Consigo sentir o teu beijo na minha testa, depois de cada um dos "brilharetes", e não precisava de ouvir-te dizer-me o quão orgulhosa estavas de mim, para que o soubesse. Era capaz de te ver novamente escapando-te para a cozinha a rir, após ter elogiado os teus cozinhados, mesmo que o fizesse sempre comparativamente aos meus. Consigo sentir os teus olhos irradiarem um brilho particular, quando eu chegava da escola e tu esperavas junto ao jardim para me abraçar e perguntar quantas vezes tinha surpreendido a professora naquela manhã. No fundo, moldaste-me uma personalidade capaz de sorrir para as orquídeas que cresciam dentro e fora de ti, em ramos floridos e enérgicos. E era singular. Era singular o dom de me fazeres sempre acreditar em ti, no que dizias, no que sentias e no que idolatravas sem constestação. Ontem, hoje e sempre. E não haverá, jamais, conclusão possível para tudo o que te quereria dizer neste Natal... e até poderiam retirar o teu lugar da mesa, na ceia, que jamais o tirariam da minha alma, que preenches diariamente e alimentas de utopias, versos e génio. Continuas a iluminar o meu cérebro, continuas a alimentar as minhas ilusões, continuas a ler a minha mente e a transfigurar esmorecimento em alento. Descansa quanto ao que me pediste. Continuo a (tentar) seguir sempre o coração, se bem que ele me tem traído nos últimos tempos.
Para ti,
avó.