terça-feira, 1 de junho de 2010

Unha e carne

Consigo ainda ver-me contigo, naquele preto e branco da mente.

Consigo fechar os olhos e ver-nos mutilar ervas daninhas no quinteiro. Consigo soletrar-nos a brincar com gatos recém-nascidos, a tomar banho em tanques de água gelada e a assaltar o frigorífico e beber leite do pacote, a meio da noite. Consigo cheirar o teu cabelo, que todas as noites fazia questão de sentir na palma das mãos e por vezes até atei aos meus dedos, para ter a certeza que não dormia sozinho. Consigo ver-te abraçar o coelho que eu era, num qualquer Carnaval em que tu eras uma Pocahontas com duas penas de galinha presas à cabeça com um elástico. Consigo distinguir claramente o azul pálido da BMW putrefacta na qual me ensinaste a cavalgar, e ainda mais nítidas estão as esfoladelas nos joelhos que tão ternamente desinfectaste e agora são cicatrizes orgulhosas. Consigo ouvir o som das montanhas russas e do 'tararara-pum!' que o avô dançou em Paris, antes de lançar grande tira de presunto à cabeça de um avec. Consigo sentir a chuva que nos fustigou a pele tostada por mil verões e nos pôs de cama, lado a lado a receber tratamento de reis e leite quente com mel (lembras-te que odiava as natas que boiavam à superfície?)
Consigo desenhar perfeitamente as linhas do piano que tiveste naquele Natal e as sombras da minha cara de enfado ao ver aquele mota de brincar que nem trazia pilhas! Consigo contar pelos dedos (das mãos e dos pés) todas as viagens de família em que levava um penico azul bebé na mala do carro e em que íamos o caminho todo a cantar a mesma música, que o pai rebobinava pacientemente até chegar a plaquinha branca e as letras pretas que nos soavam ainda a desenhos esquisitos, anunciando uma resma de curvas e contra-curvas. Lembras-te do jogo que fazíamos, que metia contar burros e rir às gargalhadas da epidemia a terra quente e a rural? Vejo-nos numa tarde de rio, a fazer de conta que nadavamos de braços bem assentes na areia, e a voltarmos para casa, o tio a resmungar trinta palavrões com sotaque, por não ter pescado nada. Ao jantar a mesma massa mergulhada em manteiga e noites de arraial foleiro e farra, quando só se aproveitava os milhares investidos em fogo, que estourava e fazia tremer as pernas.
Sei que sabes do que falo, quando ouso recordar paixonetas de liceu e CD's dos The Doors a tocar dias a fio, ao som de conversas que ou acabavam com baba e ranho, ou com risota e poucas horas de sono.

Podia desenhar-te mil cenários caricatos, agora atulhados de pontos de fuga e perspectivas bem construídas, mas há coisas que fazem mais sentido nunca serem escritas.

Agora estou aqui, passivo ao que somos.
Tenho uma casa. Tenho a prateleira de sempre, atulhada de livros e revistas de arquitectura. Tenho a varanda com vista para o rio e o "quarto-cubículo" que suporta todas as minhas neuras. Tenho cadernos de esquissos, cadernos de esboços, cadernos de contornos e de aguadas que desconheces. Tenho os planos de viagem traçados a pilot numa folha de processo. Tenho a lista dos países de interrail e panfletos de tendas, panfletos de mochilas, panfletos de tudo e de nada. Tenho o mundo no qual mergulhei, e que estava ali, ao virar da esquina e de braços abertos. Tenho aquela vida sobre a qual falamos numa noite qualquer, em que havia aquela treta da liberdade e de não ter que ir para a cama rezingão só porque o relógio já passava da meia-noite e toda a gente insistia na piada seca do carro virar abóbora. É irónico. Tenho quase tudo o que sempre quis.


Hoje faltas-me tu.
Tu e o teu abraço de irmã mais velha.




Para a minha irmã,

Ricardo